Amor em tempos de COVID

Débora Menezes
3 min readMay 23, 2021

Passaram-se 14 dias e eu voltei a sentir todos os cheiros. Foram chegando aos poucos. O primeiro foi do esmalte de unha, forte e desagradável. Me pegou distraída como um soco na cara. Depois foi o manjericão, forte e parecido com menta amarga. A arruda. O cheiro do meu próprio corpo e do suor do sovaco. Perder o olfato e voltar depois de uma semana é como ativar a memória de todas as coisas importantes, como o alho queimando devagarinho no fundo da panela. Olfato é vida.

Depois veio a vontade de botar a cara na rua. Que teve dias dessas duas semanas, que eu mal olhei as montanhas e o céu da janela. Passei o sábado ansiosa, com um aperto no peito, acho que era medo de sair na rua e passa mal. Não ter força nas pernas. Não ter fôlego pra subir a ladeira. Meu maior medo nessa doença é ficar parada, entregue na cama ou na cadeira.

Venci o medo e ganhei a rua. De máscara e desviando de qualquer pessoa. Esperei a tarde esfriar e fui até uma quadra de esportes, onde dá pra ver muitas montanhas por aqui, um mar de montanhas. Estou longe da praia, mas a sensação de ver o horizonte morro após morro dá aquela paz parecida de quando a gente vê o oceano sem fim. Como se não ver o final do mundo te trouxesse a sensação de que ele não vai acabar, talvez esteja só começando.

Depois subi a avenida principal, em conflito se eu já deveria ver as vitrines das lojas, entrar pra xeretar as coisas. Saí decidida a ter mais um cristal, eu que já tenho tantos. No dilema se ia ou não fazer isso (com uma vozinha no fundo dizendo pra sossegar e ir pra casa), acabei topando com uma dessas lojas especializadas em cristais. A dona, na calçada, sem máscara.

A cumprimentei de longe e perguntei se ela podia colocar a máscara para me atender. Recebi um olhar que não sei se era de desprezo, de nojo, ou de choque pelo pedido. Perguntei se havia algum problema, ela me disse: “eu não acredito nessas coisas”. Respondi dizendo, ok então, muito obrigada e até mais, e dei meia volta.

Não sou uma pessoa digamos, efusiva. Pra eu abraçar alguém, preciso sentir confiança e às vezes demoro mesmo a me aproximar. Com a pandemia, conto nos dedos o número de pessoas que eu abracei em 15 meses. Dá umas dez pessoas, 12 no máximo. Me sinto julgada por isso. Uma pessoa inclusive chegou a dizer que eu não parecia simpática por não deixar que ela se aproximasse. Que aqui onde moro, existe uma cultura de good vibes onde é preciso, ao que parece, demonstrar o quão bom, positivo e amoroso você é, para pertencer a essa tribo que ainda anda de saião, tem longos cabelos, acende incenso e posa fazendo ioga na cachoeira ou cantando e batendo tambor. Sem julgamentos. Só que não.

Eu não sinto no momento a menor vontade de abraçar alguém nessa cidade. Eu gostaria que meu espaço fosse respeitado, e que as demonstrações de carinho fossem o cuidado na acolhida de quem tem medo de ficar doente, ou quem já ficou. Na verdade, qualquer pessoa hoje, repito, QUALQUER pessoa, pode estar doente sem saber e transmitindo o vírus. Atitude de amor incondicional pra mim então, é usar máscara e manter distância.

Parece que essa doença veio pra gente tirar a máscara. Interna. Sim, precisamos ser positivos pra encarar tudo o que está acontecendo, mas não dá pra fingir que o vírus não existe. Tirar a máscara pra olhar de frente pra ele, o vírus invisível que ninguém enxerga. Tem um sem número de razões para algumas pessoas manifestarem essa doença e outras não. Tem também muitas razões para as pessoas morrerem em decorrência dessa doença, e outras se curarem. Ainda estamos aprendendo. Não passou ainda. É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, como diria Renato Russo, ame respeitando o posicionamento de quem quer que se cuidar e faça sua parte. Bota a p#@$ da máscara, pelamor.

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Débora Menezes
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Comunicadora, escritora e taróloga. Escrevi o livro de poemas Amor Roxo por Manaus e Outras Histórias (2018) e lancei o Eu Sou Mais 40 Tarot e Oráculo (2022).